domingo, 2 de novembro de 2014

CONTO II: Marta e o rapaz do carro.

Marta estava encostada no muro gélido daquela vazia rua. Chovia um pouco e fazia muito frio, sua vestimenta não lhe era propícia, sem levar em conta que o movimento naquela noite estava muito fraco: há duas horas que os carros passavam e não paravam.
Naqueles duros minutos que se seguiam, ela pensava no que decidira para sua vida. "Pra você restou a vida que escolheu, mas pra mim só a voz que Deus me deu". Aos seus 15 a vida era tão singela, não que agora não fosse, mas as coisas se consolidaram de uma maneira um pouco árdua. Sentia falta do calor humano. Abusada já do sexo selvagem, do capitalismo que a consumia. Sentia falta de ser humana. Um cara parou. Marta olhou para dentro do vidro do carro, um homem mito diferente daqueles que tanto iam a sua procura. Era esbelto, cabelos médios, no banco traseiro alguns livros estavam jogados.
- Venha! - Disse o homem - entre.
E ela, por alguma força interna obedeceu, sem impor preços, horários, regras... Apenas entrou.
- Então, qual teu nome?
- Marta. - Nesse instante sentiu uma enorme vergonha por ter revelado sua real identidade aquele rapaz.
Seguiram a viagem em silêncio, Marta olhava com fervor os livros que estavam a sua disposição, o homem  a examinava, não com um olhar de desejo, mas com um olhar maternal. Pegara em suas mãos o exemplar de "A insustentável leveza do ser", lembrava o que sentira quando o lera. Ele olhou-a.
- Belíssimo livro.
- Senti-me viva quando o li.
- Acho que compartilhei do mesmo sentimento. - Estacionaram em frente a uma casa totalmente diferente daqueles quartos de motel que antes se deitara Marta. O homem entrou e deixou a porta aberta, quando ela entrou, o homem apontou o sofá e a bela moça sentou-se.
Não entendera ainda onde queria chegar o estranho do carro. Belo demais, culto por completo, encantador em todos os sentidos, não havia motivo para tais circunstâncias.
- Então, o que vai ser? - Marta estava curiosa e, por incrível que pareça, excitada com a possibilidade de deliciar-se com aquele ser.
- Quero conversar contigo. - Ao falar estas palavras, sentou-se numa poltrona que encontrava-se à frente de Marta.
Enquanto isso, ela estava paralisada. Aquilo a deixou nervosa, era mais estranho do que todo o resto da situação.
- Sobre o quê? - Foram as únicas palavras que saíram de seus lábios.
- A vida... Não acha que ela se transformou em algo tão mecânico?
"Te desejo de dor..."
- Não tão mecânico, mas animal.
- Como assim? - Ele demonstrava um interesse tão grande ao que ela tinha a dizer.
- As pessoas são humanas, mas os sentimentos foram transformados. Não há mais amor puro, não há tanta paz ou amizades. As pessoas pregam o individualismo, a exaustão do homem. Não somos leves, muito pelo contrário, somos uma tempestade que cai sobre um piso de terra...
- Você ama? - Interrompeu-a.
- Não. - Respondeu secamente.
Neste momento Marta percebeu o quanto contribuía para tal fato. Não amava a ninguém, porém fingia dá-lo a todos que falsamente o procuravam. Sentia-se mais impura que nunca.
- E por quê não ama? Não achas que amando o outro, poderia fazer com que os homens fossem mais humanos?
- Talvez não... O amor nem sempre é sinônimo de felicidade. Junto a ele encontramos o ciúme e as falsas esperanças. Mesmo sendo verdadeiro, ele causa danos.
- Acho que estou entendendo seu ponto de vista. Porém creio que você confunde amor com paixão.
Ela se espantou, pois nunca amara ninguém e o amor nunca a foi oferecido entretanto agora um homem qualquer a apresentava a paixão. Sua mente girava em um complexo distante.
- Não entendo. Explique-me por favor.
- Há uma diferença gritante entre o amor e a paixão. O amor é puro, singelo... Assemelha-se a uma criança, não exige muito e ainda traz felicidade, alegria a quem o sente. Já a paixão é individual. Exige do outro aquilo que não somos capazes de proporcionarmos a nós mesmos. Ao nos apaixonarmos, tentamos ver no próximo o remédio para os medos que permeiam nossa alma. 
- Acho que o mundo é uma explosão de paixão...
Os olhos daquele amante brilhavam como estrelas. Sua fascinação por Marta era latente. 
- Mas e você, é paixão ou amor?
- Acho que sou a chama explosiva de um furacão que cospe paixão aos montes.
- Não sei se deveria citar, mas isso me lembra um homem que conheci a alguns anos. ele prezava pela humanização do ser humano, mas tudo que ele deveria falar aos olhos, falava por míseras mensagens. Isso vinha a matar-me!
- Estou matando-te então?
- Não é isso, é que vejo em seus olhos que tens muito a dizer, porém não tem o espaço. 
- Perdão pela intromissão, mas duas coisas: primeiramente, por quê me escolheu? E segundo, porque está sozinho?
- Achei-te interessante e está chovendo, além de eu precisar muito dessa conversa. Estou só pois acho que sou muito amor enquanto os outros esperam e explodem paixão.
Marta calara-se e nem imaginava o que se passava no corpo daquele homem. A qualquer momento poderia morrer e ela estava dando a oportunidade que ele tanto esperava em sua vida. 
Mas as horas passaram e a madrugada chegou, aquele amável ser seguiu seu destino, deixando com a bela mulher o seu exemplar de "a insustentável leveza do ser". Porém Marta não pôde parar para pensar no que acabara de acontecer, pois nesse instante mais um carro parava em seu ponto. Só que os homens eram os mesmos e o carro fedia do mesmo jeito e no fim, os quartos acabaram por serem os mesmos de sempre... E no término... Bem, o término foi paixão, pois o amor já não existia.

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